Foto mostra mulher, que passou por uma gestação incompatível com a vida, segurando a filha

Incompatível com a vida: Eliza Capai lança filme sobre perda gestacional

No novo documentário, a cineasta conta a própria história e a de mães que receberam o diagnóstico de gestações incompatíveis com a vida e que enfrentaram lutas relacionadas à interrupção legal da gravidez

Por Amanda Stabile

13|04|2023

Alterado em 13|04|2023

No próximo sábado (15), o documentário “Incompatível com a vida”, dirigido pela jornalista e cineasta Eliza Capai, será lançado em São Paulo (SP) no festival É Tudo Verdade. Com duas exibições gratuitas na capital, o longa conta a histórias de mães que receberam o diagnóstico de uma gestação em que os bebês não sobreviveriam fora da barriga.

A partir disso, elas enfrentaram lutas físicas e emocionais e dilemas relacionados à interrupção legal da tão sonhada gestação. Dentre elas, a história da própria diretora é narrada no documentário. Conversamos com Eliza sobre os desafios de estar do outro lado das câmeras, sobre o debate do aborto legal no Brasil e sobre as expectativas com o trabalho.

Mas antes de conferir a conversa, saiba mais sobre a agenda de exibição gratuita do documentário:

São Paulo

15 de abril, às 20h30, no Cine Marquise

19 de abril, às 19h, na Cinemateca Brasileira

Rio de Janeiro

18 de abril, às 20h, na Estação NET Botafogo

19 de abril, às 18h, na Estação NET Rio

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“Eu encontro no documentário uma forma de fazer as perguntas e de estar em lugares que eu gostaria”, aponta Eliza Capai

©João Pina

Nós, mulheres da periferia: Vamos começar com Eliza por Eliza? Quem é a Eliza Capai?

Eliza Capai: Como qualquer pessoa, eu sou muitas pessoas. E eu acho que eu tenho a sorte de conseguir usar a minha profissão para ir atrás das minhas curiosidades pessoais. Então eu encontro no documentário uma forma de fazer as perguntas e de estar em lugares que eu gostaria.

Eu gosto da minha curiosidade. Eu gosto quando eu consigo criar empatia com as pessoas e com os lugares. Imaginar outras vidas me dá muito prazer, assim como transformar tudo o que eu estou aprendendo em filmes, para poder dividir às vezes anos da minha vida em alguns minutos para outras pessoas.

De uma maneira mais pragmática, eu nasci no Rio de Janeiro, cresci no Espírito Santo e tenho uma vida um tanto nômade. Eu estudei jornalismo e desde o início da minha vida profissional eu tenho ido para o vídeo e fazendo múltiplas funções no cinema, fazendo muita coisa sozinha. E, nos últimos anos, eu tenho conseguido trabalhar também com equipes mais estruturadas.

Nós: Eliza, no documentário você diz que costuma fazer filmes de realidades muito diferentes da sua. Quais os desafios de contar a própria história e de contar a história dos outros?

Eliza: Eu trabalho com a questão de gênero, fazendo documentários que abordam o feminino, desde que eu comecei a minha carreira. E quando eu vivi a situação retratada no filme eu fui invadida por uma certeza de que eu faria um filme sobre o tema mesmo se eu não estivesse vivendo aquilo. Porque eu vi que era algo que eu teria interesse, profissionalmente falando. 

Eu entendi o quanto de busca envolve esse tema. A tristeza profunda, a vergonha, a culpa, tudo isso são coisas que ficam restritas a dentro de casa. Ainda mais porque, no Brasil, o aborto ainda é um crime, e se uma mulher falar que realizou ela está confessando um crime.

No momento em que eu me deparei com a situação eu senti que se eu não fosse capaz de retratar a mim mesma, de inverter a câmera e me expor sobre um tema que eu achava tão importante de ser discutido, eu não teria mais o direito de colocar outras pessoas nesse lugar.

Eu nunca tinha sentido isso. Foi um lugar quase de missão. E eu comecei a gravar sem pensar muito em como seria o uso desse material. A gente colocava a câmera no tripé e vivia a vida. Alguns momentos eu entendi que tinha uma densidade emocional e foi um processo muito complexo porque eu estava vivendo um luto quando fui assistir a esse material. Eu fui entendendo aquilo como cura, como literalmente ver e encarar a minha própria história.

Isso poderia ter servido apenas como a minha terapia e já seria muita coisa, né? Mas em algum momento eu falei “não, isso aqui é importante de ser mostrado para outras pessoas”. Eu mostrei inclusive para pessoas que não me conheciam, para entender o potencial daquele material. Então, eu entendi que eu também precisava fazer esse filme de uma forma mais complexa, conversar com outras pessoas que tivessem em momentos diferentes do luto para que a gente conseguisse fazer um coral de vozes que conseguisse dar conta desse tema.

Cruzar o meu processo com as histórias de outras mulheres foi muito rico. Eu entendi que eram histórias muito diferentes, mas com sentimentos muito parecidos. Eu sinto que o desafio do filme foi ir achando o lugar de cada uma dessas histórias. Hoje eu entendo que o meu “eu” estava lá vivendo as situações, as imagens cruas, e as outras mulheres já haviam elaborado aquilo que aconteceu, então elas estão entrando falando de um passado, a partir de uma elaboração maior. 

Nós: Qual a importância do companheiro/a/e nesse processo?

Eliza: Quando a gente pensa em aborto e perda gestacional tem uma tendência muito grande de pensar na mulher.

Como a gente vem de uma sociedade muito machista, em que as questões reprodutivas recaem todas sobre a mulher, infelizmente a questão do luto também recai sobre elas num lugar geral e eu acho que a gente precisa começar a entender isso como uma questão do casal, como uma questão de todos. 

Trinta por cento das gravidezes terminam em abortos, boa parte de abortos espontâneos, então estamos falando de uma parcela muito grande da população que passa por esses sentimentos que são retratados no filme. Se nós, mulheres, que já temos essa carga de sermos responsáveis pela vida reprodutiva, não temos uma educação emocional,  imagina os homens que são criados para ser fortes, não chorarem e para resolver as coisas. 

No caso de uma má formação incompatível com a vida não tem o que ser resolvido. A questão central é que o filho vai morrer e aquela mulher vai ficar muito triste, porque vai ter um baque hormonal. Então o homem tem que saber lidar com aquela situação, inclusive lidar com os próprios sentimentos. E o desejo no filme foi incluir esses homens. 

Cada um deles tem posições muito diferentes. Tem um que fala que não se permite chorar, apenas escondido. E a história dele, que não está toda no filme, é que quando deu seis meses da morte da filha, ele começou a se sentir responsável por aquela morte, ele começou a achar que estava ficando louco. Por sorte ele é de uma família com uma estrutura suficiente para ir atrás de um trabalho terapêutico. A partir da terapia ele entendeu o que de fato tinha acontecido e emocionalmente ele se permitiu viver. Assim, ele e a esposa conseguiram restabelecer um novo tipo de relação, muito mais profunda. 

Então, além do nicho feminino, eu acho que o filme naturalmente conseguiu extrapolar e conversar com esses homens, incluindo eles em um assunto que deveria ser de todo mundo.

Quem não tem alguém muito próximo que já passou por uma situação de perda gestacional? É algo que a gente tem que estar melhor preparado como sociedade para lidar.

A ideia do filme não é falar o que cada um tem que fazer nessas situações, mas proporcionar uma vivência emocional para que cada um consiga refletir e saber como lidar quando acontecer com os nossos amigos, com os nossos parentes, com a gente.

Nós: Em certo momento, vocês abordam a questão da interrupção legal da gestação, um processo extremamente burocrático e demorado no Brasil. Como você acredita que a criminalização do aborto/da interrupção da gestação impacta esse cenário?

Eliza:

O sentimento que me fez ter forças para fazer esse filme foi a raiva de imaginar a história clássica que as mulheres vivem no Brasil diante de um diagnóstico de uma má formação incompatível com a vida e de uma gravidez que elas sabem que não tem condições, sejam econômicas, sociais ou emocionais, de levar adiante.

No processo de fazer esse filme eu aprendi várias coisas sobre as nossas questões legais e médicas. Uma que me marcou muito foi a partir da entrevista com o Dr. Olímpio Moraes, médico de um hospital ligado à Universidade de Pernambuco, que teve um papel fundamental na luta a favor do aborto no Brasil. Alguns desses abortos perseguidos acabaram sendo levados para esse hospital que ele dirige e ele me contou a perspectiva dele sobre as leis de aborto no Brasil.

Duas situações em que o aborto é permitido vieram a partir da lei de 1940, de um governo de Getúlio Vargas, com inclinações e admiração pelos governos fascistas europeus. O Dr. Olímpio chama de “abortos que defendem um homem” de alguma forma. Porque quem poderia abortar eram: mulheres que foram estupradas – porque o homem não vai criar um filho de um outro homem – e mulheres em risco de vida – porque o homem não pode perder a progenitora, que vai cuidar dos outros filhos.

Infelizmente a gente vê esse tema de saúde pública sendo tratado como um tema religioso e eu acho que toda e cada mulher tem que ter o direito de decidir o que fazer. Se é uma mulher que acha que isso é um pecado e é importante para ela e para o Deus dela que ela leve a gestação até o final ela tem que ter o direito de fazer isso. Ela tem que ter acolhimento para fazer isso da melhor forma possível, da mesma forma que uma mulher que fala “eu não tenho estrutura emocional” ou “isso vai aumentar o meu sofrimento”.

Essa violência extrema que as mulheres passam no Brasil para acessar o direito ao aborto para mim é um crime que o Estado comete contra nós.

Se a gente pega o número de abortos efetuados legalmente e compara com o número de entradas nos hospitais públicos por causa de complicações de abortos inseguros, os dados são chocantes: são cerca de 100 entradas no SUS [Sistema Único de Saúde] para cada aborto realizado de forma legal no país. Então é um descompasso. Esses abortos continuam sendo feitos, só que essas mulheres estão sofrendo desnecessariamente.

Eu tive a sorte de estar em Portugal no processo do meu aborto e eu tive complicações, fiquei uma semana internada. E eu fico sempre pensando que se eu estivesse no Brasil eu poderia ter morrido ou perdido o meu útero.

Isso pode ocorrer com qualquer uma de nós e saber disso nos ajuda a entender a gravidade desse problema e que isso ocorre provavelmente com 500 mil mulheres por ano no nosso país.

Além disso, para você fazer um aborto você tem que estar muito desesperada porque não é gostoso para ninguém. 

E muitas mulheres periféricas não chegam nem a saber que elas podem interromper a gestação em alguns casos porque é difícil ter um ultrassom de qualidade. E mesmo quando há, será que o médico vai falar mesmo? Será que vai investigar se esse problema vai resultar em uma incompatibilidade com a vida?

Nós: Em relação a religiosidade, talvez ela tenha um papel na culpa relatada por algumas das suas entrevistadas. Inclusive, em relação a isso, uma delas fala que “quando a gente vive na pele, a percepção muda”. Qual a sua opinião sobre?

Eliza: Essa fala é da Priscila, aquela que o avô é pastor da igreja Assembleia de Deus e que a família é evangélica. Isso que ela fala sobre ser diferente quando é na nossa pele, me faz pensar sobre quantas famílias religiosas, que sempre foram contra o aborto na teoria, tem uma prática diferente ao passar por uma situação dessa. Porque além do aborto ser um crime, é um tabu. A gente não fala sobre isso, então não consegue formar uma opinião pública que fale sobre o problema real. 

Por que falar de Deus, ser contra ou a favor, é uma situação fictícia porque você não está falando sobre algo que realmente está acontecendo, mas do que você gostaria. Eu gostaria de morar numa sociedade em que não houvesse aborto, nenhuma má formação fetal e que as pessoas tivessem tal grau de educação sexual que pudesse evitar toda a gravidez que não é desejada.

Passar por um aborto foi uma das coisas mais fisicamente traumáticas que eu já passei. Eu sangrei, tive várias complicações, é algo ruim passar. Ninguém gostaria de passar por uma situação dessa.

Mas como a gente enfrenta para que seja uma sociedade com um pouco aborto? Precisamos encarar o problema, ter estatísticas para entender, muita educação sexual e exames de qualidade para que qualquer complicação seja diagnosticada rápido. Assim o sofrimento pode ser evitado.

Nós: Você acredita que, se esse fosse um processo que os homens sentissem “na pele”, o aborto legal seria menos burocrático e demorado?

Eliza: O nosso Congresso e o nosso Senado historicamente não têm a nossa presença. Os cargos da nossa República são ocupados por uma maioria avassaladoramente masculina.

E eu tenho certeza que se fosse nos corpos masculinos que recaísse as questões do aborto, logo seria legal. Eu não tenho dúvida disso.

Porque se uma parcela daqueles deputados e senadores tivessem sentido as dores um aborto, o descompasso hormonal que se segue, a possibilidade real de morte por algo que poderia ser evitado, seria diferente.  Se os nossos espaços de decisão fossem ocupados majoritariamente por mulheres, se quem decide isso fossem pessoas que passam por isso, o aborto não seria mais um tabu, já seria um tema resolvido na nossa política pública.

É um problema de falta de empatia muito grave que a gente tem na nossa sociedade. Eu estou lendo agora o Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, e é muito interessante como ela vai traçando o machismo não como uma coincidência, mas como um fato, uma política para a possibilidade da existência e consolidação do capitalismo. Se a mulher não prestasse o trabalho de cuidado o capitalismo não existiria da forma que é hoje, não seria possível nem viável. Então essa operação dos nossos corpos é pensada.

Em um país como nosso, terrivelmente desigual e classista, manter nossos corpos em sofrimento e submissão é uma política pública. Na luta da subsistência, quando você está num lugar de sofrimento, você faz o que for preciso para sobreviver.

Nós: Para terminar, me conta: quais as suas expectativas e objetivos com o lançamento do documentário?

Eliza: Vamos falar de sonhos: eu tenho dois grandes objetivos. Eu realmente acredito que o cinema, as artes e o jornalismo têm a capacidade de nos criar catarse: fazer com que por meio da empatia com outro a gente consiga acolher melhor as nossas próprias vivências, os nossos próprios sentimentos e repensar a nossa existência. 

E eu tenho muita esperança de que esse filme chegue nas pessoas que precisam conhecer essas histórias: aquelas que passaram em primeira pessoa ou viram pessoas muito amadas vivendo situações parecidas. Que elas se sintam abraçadas por esse filme, que consigam chorar, caso não tenham conseguido nos seus próprios processos de luto, ou elaborar de outras formas possíveis as próprias vivências. 

O filme será lançado em duas sessões gratuitas em São Paulo e duas no Rio de Janeiro e eu espero que elas sejam formadas por uma parcela significativa dessas pessoas. Que o nascimento desse filme já cumpra esse desejo.

Por outro lado, eu gostaria muito que o filme conseguisse auxiliar pessoas e grupos que trabalham pela questão do aborto legal. O filme foi pensado para não trazer o debate formal sobre o aborto, mas situações, e permite que a gente crie empatia com pessoas muito diferentes – de classes sociais, lugares e decisões diferentes. 

Que isso consiga sensibilizar para o debate sobre o aborto legal, seja esse debate que o filme traz de maneira mais óbvia, sobre a incompatibilidade com a vida – aliás, já tem grupos que lutam por esse direito sem a necessidade de judicialização –, seja para o debate daquelas que lutam pelo aborto legal, como espero que o nosso país venha a vivenciar o mais breve possível.